Lockheed SR-71 Blackbird Foto: USAF |
Em Abril de 1986, no seguimento de um ataque a soldados americanos numa discoteca de Berlim, o presidente Ronald Reagan ordenou o bombardeamento dos campos de terroristas de Muammar Kadaffi. A minha missão seria voar sobre a Líbia e registar fotograficamente os danos infligidos pelos nossos F-111. Kadaffi tinha estabelecido uma "linha da morte", uma marca territorial através do Golfo de Sidra e ameaçava abater qualquer intruso que ousasse atravessar essa fronteira.
Na manhã de 15 de Abril, passei essa linha como um foguete a 2125 mph (NR: aprox. 3400 km/h). Pilotava então o SR-71, o avião mais rápido do mundo, acompanhado pelo Maj Walter Watson, o Oficial de Sistemas da missão. Tínhamos já atravessado a Líbia e aproximávamo-nos da volta final sobre a paisagem desértica, quando o Walter me informou que tinha recebido sinais de lançamento de mísseis. Rapidamente aumentei a nossa velocidade, calculando o tempo que demorariam as armas, provavelmente mísseis superfície-ar (SAM) SA-2 ou SA-4, capazes de velocidades da ordem de mach 5, a atingir a nossa altitude. Estimei que poderíamos bater os mísseis até à volta e mantive a nossa rota. Após alguns agonizantes segundos, fizemos a volta e disparámos em direçao ao Mediterrâneo. "É melhor puxá-lo para trás" sugeriu o Walter. Só então reparei que ainda tinha a manete de potência completamente para a frente. O avião voava uma milha a cada 1,6 segundos, bastante acima do nosso limite de mach 3,2. Foi o mais rápido que alguma vez voei. Puxei a manete para trás imediatamente a Sul da Sicília, mas mesmo assim ainda ultrapassámos o reabastecedor que nos esperava sobre Gibraltar.
Com a costa Líbia a aproximar-se, Walt pergunta-me pela terceira vez se acho que o avião consegue atingir a velocidade e altitude que queremos a tempo. Eu digo-lhe que sim. Eu sei que ele está preocupado. É ele que lida com a informação; é isso que os engenheiros fazem e ainda bem que o faz. Mas eu tenho as minhas mãos na manche e nas manetes de potência e consigo sentir o coração de um puro-sangue, correndo com a força e perfeição que foi concebido para possuir. Também falo com ele. Como o veterano de combate que é, o jato pressente a zona alvo e parece preparar-se.
Pela primeira vez em dois dias, a porta da entrada de ar fecha o fluxo e todas as vibrações desaparecem. Habituámo-nos tanto aos constantes barulhos que o som dos motores a jato parece tranquilo em comparação. A velocidade mach aumenta de modo correspondente e o avião voa agora naquele estilo confiante e suave a que nos habituámos a estas velocidades. Atingimos a nossa altitude e velocidade-alvo, com cinco milhas de folga. Entrando na zona-alvo, em resposta à recentemente reencontrada vitalidade da nossa montada, Walt diz, "É incrível" e com a minha mão esquerda puxando as duas manetes para a frente, eu penso para comigo que há muita coisa que não ensinam nas escolas de engenharia. Pela minha janela esquerda a Líbia parece uma caixa de areia gigantesca. Um terreno castanho indistinto que se estica até ao fim do horizonte.
Não há sinais de atividade.
Depois Walt diz-me que está a receber sinais eletrónicos, e não são do tipo amigável. O jato continua a portar-se perfeitamente, voando melhor do que o fez nas últimas semanas. Parece saber onde está. Gosta das velocidades mach elevadas, enquanto penetramos cada vez mais no espaço aéreo líbio. Deixando os vestígios do nosso "boom sónico" através de Bengazi, eu sigo sentado inerte, com as mãos paradas nas manetes e manche e os olhos pregados nos instrumentos. Apenas o indicador de mach se move, aumentando regularmente, numa consistência rítmica similar ao de um corredor de longa distância que ganhou novo fôlego e acompanha a "pedalada". O avião foi feito para estas velocidades e não ia deixar que uma porta da entrada de ar errática o fizesse perder o espetáculo. Com a forças de quarenta locomotivas perfuramos o tranquilo céu africano e prosseguimos cada vez mais para Sul através de uma paisagem sem vida. Walt continua a atualizar-me com inúmeras reações que vê no painel DEF. A cada milha que atravessamos, a cada dois segundos, eu fico mais desconfortável, pilotando através desta terra estéril e hostil. Fico satisfeito do painel DEF não ser no cockpit da frente. Seria uma grande distração agora, ver todas aquelas luzes a piscar. Em contraste o meu cockpit está calmo, enquanto o avião ronrona e liberta a sua reencontrada força, acelerando lentamente. Os cones dos motores estão completamente para trás, enterrados 26 polegadas (65cm) dentro da fuselagem. Com todas as portas das entradas de ar completamente fechadas a mach 3,24 os motores J-58 são mais como motores de foguetes, engolindo 100.000 pés cúbicos de ar por segundo (2700 metros cúbicos). Somos agora um expresso troante, e enquanto passamos pelo quintal do inimigo espero que a nossa velocidade continue a derrotar os radares dos mísseis lá em baixo.
Aproximamo-nos da volta e isso é bom. Só vai dificultar mais a qualquer míssil disparado, a missão de nos atingir. Aumento a velocidade a pedido do Walt. O avião não falha uma única batida do coração. Nada abana e as câmeras têm uma plataforma perfeitamente estável. Walt recebe sinais de lançamento de mísseis. Antes que ele consiga dizer alguma coisa a minha mão esquerda instintivamente move as manetes ainda mais para a frente. Os meus olhos estão colados aos indicadores de temperatura, por saber que vamos provavelmente atingir velocidades que podem danificar a nossa montada. As temperaturas estão relativamente baixas e por todas as temperaturas altas que tivemos até agora, fico surpreendido, mas na realidade até não me surpreende. Mach 3,31 e o Walt continua calmo por agora. Movo o meu indicador através da pequena roda prateada do painel do piloto automático, que controla a inclinação da aeronave. Com a agilidade de um fabricante de relógios suiços, rodo o controlo entre 1/8 e 1/16 de polegada, parando numa posição que permite a subida a 500 pés por minuto (150m/min) que eu desejo. A aeronave levanta o nariz um sexto de grau e sabe que a vou puxar mais à medida que aceleramos. A velocidade continua a aumentar, mas durante este troço da rota, não tenho vontade nenhuma de puxar as manetes para trás.
A voz do Walt perfura o meu cockpit, com notícias de mais lançamentos de mísseis. A gravidade que lhe pressinto diz-me que ele pensa serem estas ameaças mais reais que as anteriores. Em poucos segundos ele diz-me para "o puxar para cima" e eu empurro firmemente as manetes até ao fim . Nos segundos seguintes eu vou deixar o jato andar tão depressa quanto ele quiser. A última volta aproxima-se e ambos sabemos que se conseguirmos chegar a essa volta a esta velocidade, quase de certeza escapamos aos mísseis. Ainda não estamos lá porém e pergunto-me se o Walt irá pedir para eu fazer uma manobra evasiva, que nos colocaria fora da rota. Sem pronunciar palavra, sinto que o Walt pensa em conjunto comigo se devemos manter ou não a nossa rota programada. Para evitar preocupar-me deito um relanço ao exterior, pensando se serei capaz de vislumbrar algum míssil apontado a nós. Estranhos são os pensamentos que vagueiam pelas nossas mentes em momentos como estes.
Dou comigo a relembrar as palavras de antigos pilotos de SR-71 debaixo de fogo inimigo no Vietname do Norte. Diziam que as poucas detonações que conseguiam ver do cockpit mais pareciam implosões do que explosões. Isto devia-se à enorme velocidade a que o avião se distanciava das explosões. Não vejo nada para além do infinito céu azul metálico e a mancha de terra por baixo. Apenas tive os olhos fora do cockpit por alguns segundos mas parecem muitos minutos desde que verifiquei as agulhas. Redirecionando a minha atenção para dentro, olho primeiro para o contador de milhas, que me diz quanto falta para podermos começar a voltar. Depois reparo na velocidade que passa dos 3,45 mach e apercebo-me que o Walt e eu atingimos novos máximos pessoais. A velocidade continua a aumentar. A viagem é incrivelmente suave.
Parece haver agora uma confiança confirmada entre mim e o avião. Ele não hesitará em levar-me à velocidade que precisamos e eu posso estar confiante que não terei problemas com as entradas de ar. Walt e eu dependemos do avião agora mais do que nunca - e ele parece saber disso. A temperatura exterior baixa parece ter acordado nele o espírito com que nasceu há muitos anos atrás, quando homens dedicados à excelência, tiveram tempo e se preocuparam em construí-lo bem. Com os cones e as portas tão fechadas quanto possível, corremos contra o tempo que demorará um míssil a atingir a nossa altitude. É uma corrida que este jato não nos vai deixar perder.
A velocidade atinge 3,5 mach quando chegamos os 80.000 pés (24.000m). Somos como uma bala agora - só que mais rápidos. Chegamos à volta e sinto algum alívio assim que o nosso nariz se desvia de um país do qual já vimos o suficiente. Rugindo a passar por Tripoli, a nossa velocidade continua a aumentar, e o "trenó barulhento" agride o inimigo uma vez mais com um "sonic boom" de despedida. Em segundos já só vemos o azul do Mediterrâneo a envolver-nos. Apercebo-me que ainda tenho a mão esquerda completamente para a frente e continuamos a voar como foguetes em pós combustão máxima. O TDI mostra-nos agora números mach não só desconhecidos para nós, como também assustadores. Walt diz que o painel DEF está calmo e sei que é altura de reduzir a nossa formidável velocidade. Puxo as manetes para o regime mínimo, mas o avião não quer diminuir a velocidade. Normalmente, a velocidade seria afetada imediatamente. Mas por alguns momentos o velho 960 deixou-se ficar naquele mach alto de que parecia gostar e tal como o trenó orgulhoso que é, só começou a abrandar, quando nos encontrávamos bem longe do perigo.
Adorava aquele avião.
Retirado do livro Sled Driver (Condutor de Trenó) de Brian Shul
Brian Shul ingressou na USAF em 1970 e voou 212 missões de apoio aéreo aproximado no Vietname até ser abatido e despenhar-se num AT-28. Sobreviveu milagrosamente e foi submetido a 15 cirurgias, pensando nunca mais voltar a voar. Após meses de fisioterapia conseguiu passar nos exames físicos e voltar ao serviço ativo. Dois dias depois estava a voar num A-7D, após o que seguiu para o primeiro esquadrão operacional de A-10. Na última colocação da sua carreira, concorreu e foi selecionado para voar no ultra-secreto SR-71. Com exigências físicas ao nível de astronautas, Brian passou com distinção. Retirou-se da Força Aérea em 1990 e dedicou-se a escrever e fotografar. É o autor de cinco livros de aviação, como escritor e fotógrafo.
https://galleryonepublishing.com/BlackbirdStores/
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