Alouette III com T-6 em fundo Foto: Autor desconhecido |
Capítulo 1
Capitulo 2
Capítulo 3
Março de 1974
Depois de um voo e de preparar o heli para nova missão, saímos para jantar, eu o Zé Grande, o Barbosa e o Azevedo.
Como era o nosso costume, íamos à cidade ao restaurante Miralago comer o “Frango à Miralago”, beber tintol e ir ao cinema. O mesmo filme era projetado durante uma semana e como todos os dias íamos ao cinema era um fartote. “A mania das grandezas “cujo ator era o Luí de Funés “. Era para a "desgraça". Até entravamos a marchar! Era um gozo. Era bom, descomprimíamos a tensão depois de um dia de voo.
Numa dessas noites estava eu a dormir e comecei a sonhar que estava na placa do AM (NR: Aeródromo de Manobra) de Vila Cabral e ouvia o som do helicóptero. Ouvia o bater das pás, mas não o via e de repente ouço uma explosão e não ouço mais nada. Acordo a transpirar e cheio de medo com o coração a bater muito depressa. Acabei por sossegar e dizer para mim que era um sonho. Não comentei com ninguém e deixei andar, tinha sido um sonho. Só consegui adormecer horas mais tarde.
O helicanhão Foto: Autor desconhecido |
Passado tempos, fazemos uma nova operação em Tenente Valadim, pois a zona de ataque era numa zona chamada Serra Cortada, onde o inimigo estava. Dou saída ao helicanhão que era pilotado pelo Cap. Castelo e levava como atirador o Sarg. V. Carvalho (o sonho vem-me à memória). Durante a largada o helicanhão dava proteção à tropa e aos helis. Como tal, tinham de se meter no fogo do inimigo.
O helicanhão é atingido. Ao retirar o atirador à chegada, sinto o cheiro de pólvora e carne queimada. É um cheiro característico. Penso de imediato. O Vaz foi atingido e queixa-se de uma perna. Foi evacuado para Nampula.
Finda a operação voltamos para Vila Cabral.
Há uma nova operação em Niassa. Quando soube que a mesma ia ser repetida e era para o mesmo local, preparei tudo que era necessário para a operação: óleos, massas, macas e ferramentas.
Linha da frente de AL III em África Foto: Autor desconhecido |
Chegam quatro helicópteros e no dia seguinte, partimos para as novas operações para a Serra Cortada. Entretanto, surge o mau tempo e acabamos por ficar no aquartelamento em Tenente Valadim.
Enquanto aguardávamos que o mau tempo levantasse, ficámos a jogar às cartas, então o que eu gostava jogar: à Lerpa. Não me recordo de todos os jogadores, mas era eu, o Mendonça e o Manel da milícia do Roxo, que estava a perder muito até à hora do jantar. Depois de bem comer e beber, regressàmos às cartas. Nessa altura, a minha sorte mudou: comecei a ganhar. Consegui ter um saldo positivo. À meia-noite acabou-se o jogo. Não perdi, também não ganhei muito. Ficámos todos satisfeitos. Aguardávamos o dia seguinte.
Que foi feito desse tal Manuel? Era engraçado quando contavam as histórias dele. Lembro-me que o queriam promover a alferes e ele recusou-se pois preferia ser sargento, que tinha mais riscos.
Às seis horas da manhã já estávamos no refeitório a tomar o pequeno almoço e depois fomos para a pista preparar os helicópteros e os T-6. Foi uma noite mal dormida, em cima duma espécie de colchão.
As minhas máquinas (helis) eram o helicanhão e um de transporte que estavam em Vila Cabral. Começo por dar saída ao canhão que era pilotado por Cap. Fernando Castelo e o atirador era o V. Carvalho. Pensei que ia haver vingança da operação passada. Fizemos a inspeção antes de voo, depois de darmos a volta à máquina. O capitão senta-se e coloca o cinto de segurança e eu verifico e bloqueio o cinto. Digo que o cinto não estava bloqueado, o capitão faz um sorriso e pisca o olho. Desbloqueia como quem diz que "está tudo bem". Largo o heli depois de ver se tinha fugas, quer de óleo quer de combustível. Como estava tudo bem, por sinais digo ao Castelo que estava tudo bem e vou para outro helicóptero, faço as mesmas operações e dou o OK.
O heli do Castelo, é o primeiro a descolar. Depois vão todos os outros. Quando o último descola, ao ouvir o som dos helis, recordo-me do sonho que tinha tido.
As evacuações de feridos e mortos em AL III Foto: Autor desconhecido |
Passados minutos, aterra um helicóptero a dizer que o Capitão tinha sido abatido. Eu não acredito! Afinal o sonho estava a realizar-se. Sou dos primeiros a querer ir para o local da queda. Não deixam. Vai um outro mecânico (Mendes) que é largado no local da queda e retiram o atirador mais uma vez ferido e o corpo do Capitão.
Retiro o corpo do Capitão do heli à chegada. A maca é colocada no solo. Olho para o corpo. Só se ouve o barulho dos helicópteros e dos aviões no ar. O vento sopra e agita a ponta dos bigodes do Capitão. Fico a olhar. Um fio de sangue seco no canto da boca. Uma raiva de revolta surge em mim. Penso em tudo. Quero vingança. O meu Capitão está estendido numa maca e morto. MALDITOS! Isso não vai ficar assim penso eu, mas não estava tudo nas minhas mãos…
Começo a voar com pistola e a minha metralhadora uma Pepshaware (arma capturada ao inimigo). Passado poucos dias, devolvo a pistola, pois só me incomodava. Preferia ter a metralhadora. Saio com o Barbosa para uma evacuação de “zero horas". A rapar as copas das arvores, passamos por Nova Viseu e vamos à procura do local para efectuarmos a evacuação, pois as coordenadas eram para algures perto de Nova Viseu.
Voámos para vários sítios. Enquanto procurávamos a tropa, que estava no mato, bem os tentámos encontrar através de chamamento da rádio: "terra, terra é a Mosca". Não conseguimos localizá-los. Voltámos a Nova Viseu para nos confirmarem o local, mas não conseguiram dar mais informações. Regressámos por isso para Vila Cabral, e passados três dias voltámos para o local, com novas coordenadas. Conseguimos localizar o pelotão, aterrámos e quando ia sair com a maca, entregam-me um saco de lona ensanguentado e com um cheiro horrível, pois foram três dias à espera de ser retirado do local.
Regressamos a Vila Cabral com um cheirete dentro do heli. Como tinha levado o meu desodorizante pusemos o lenço que trazíamos à volta do nariz e comecei a pôr o spray. Passámos o voo a gastar o meu rico desodorizante. Tinha sido bem caro, tinha-o comprado em Nampula.
Aterrámos no hospital. Como de costume, apareciam muitos civis e militares a quererem ver o que o heli trazia. E nós "mascarados". Era um voo diferente.
Aparecem os maqueiros para retirarem a maca e eu entrego-lhes o saco como mo entregaram. Assim que acabo de entregar o corpo despedaçado dentro do saco, uma mulher pergunta o que era aquilo. Eu por linguagem gestual digo "o corpo de uma pessoa".
A mulher abriu a boca e caiu para o lado.
Fiz sinal para o maqueiro, a indicar a mulher caída.
Regressámos à base de portas abertas, para não termos de aguentar mais o cheiro.
Texto: Abdul Osman, Ex-MMA
0 Comentários:
Enviar um comentário