Numa altura em que a aviação do mais pesado que o ar dava os seus primeiros passos, desde o “gatinhar” de pioneiros como Santos Dumont e dos Irmãos Wright (sem entrar em discussões sobre qual foi o primeiro), que o voo destes e muitos outros pioneiros, “gloriosos malucos das máquinas voadoras”, era um fenómeno crescente acompanhado à distância no nosso cantinho peninsular, acompanhado mas também participado, por pioneiros nacionais e estrangeiros, como foi o caso de João Gouveia, Abeillard Gomes da Silva, Armand Zipfel, Julien Mamet, Óscar Blanck, Sanches de Castro, D. Luís de Noronha, Abílio Nunes dos Santos, e outros.
Pelo que julgo saber, a primeira vez que se tentou voar em Portugal com recurso a um aeroplano, foi no ano da fundação do Aero Club de Portugal, que aliás promoveram a vinda do piloto francês Armand Zipfel, que aos comandos de um Voisin Antoinette, no Hipódromo de Belém, a 27 de Outubro de 1909, se elevou no ar num salto de 200 metros a 8 metros de altura. Lamentávelmente não foi muito bem sucedido, espatifando o aeroplano, não se repetindo a proeza.
Algum tempo depois, é Julien Mamet que eleva sobre os céus da capital, num Blériot XI, a 27 de Abril de 1910.
Mas foi só em 1912, que tem lugar as «primeiras demonstrações aéreas executadas de forma consistente», no Porto, como veremos.
A Creche do jornal “o Comércio do Porto”
Fundadas a partir de 1910 e até 1933, por iniciativa do jornal “O Comércio do Porto” são um conjunto de creches que tinham em vista auxiliar a prole da massa crescente de operárias fabris, sendo as creches custeadas por apoios diversos, nomeadamente subscrições públicas, donativos, etc.
Já em 1912, a creche “O Comércio do Porto”, prestava auxílio a um impressionante número de crianças, 770 por mês.
Sucede que, os primeiros passos da aeronáutica era seguidos com muita atenção não só pela redacção mas sobretudo pelos leitores do jornal de forma muito entusiasmada e, em 1912, a direcção da creche decidiu uma forma inovadora de angariar fundos para as suas obras: exibir um aeroplano em demonstrações de voo na cidade, para gáudio de todos e para que, ao mesmo tempo, pudesse «redundar em benefício da creche», conseguindo-se os fundos necessários para a manutenção e expansão da sua obra.
Tendo sempre presente esse objectivo, meteram mãos à obra e empreendeu-se a aquisição de um aeroplano para levar o público « a vêr esse prodigioso navio aéreo que se chama um aeroplano». Nas páginas do Comércio do Porto, foi-se criando nos leitores uma expectativa tal que a população estava ansiosa de ver o aeroplano voar muito antes de o mesmo cá chegar.
É por isso adquirido em Paris um Maurice Farman tipo 1912(1), por intermédio do agente local do jornal, o Dr. J. M. Cisneiros Ferreira, que depois de estudar as diferentes opções, procedeu à sua aquisição directamente junto do fabricante.
A réplica do MF4 da colecção do Museu do Ar,
quando ainda estava em Alverca.
O aparelho da casa Farman, e que foi testado pelo próprio, ostentava uma envergadura de 15 metros, velocidade máxima de 80km/h, motor Renault de 70cv, carga útil de 300kg. Podemos encontrar uma réplica no Museu do Ar, em Sintra.
A réplica representa um Maurice Farman MF4 “Longhorn”, foi construída na OGMA em 1977, tendo sido apresentada já no Porto, nas comemorações do aniversário da Força Aérea Portuguesa desse ano, e exposta como figura central, também esta, no Palácio de Cristal.
A exposição da FAP de 1977, no Palácio de Cristal,
tem como figura central o MF4, sendo rodeada de
diversos meios aéreos e equipamentos, não só da
FAP como dos aeroclubes.
Desmontado e embalado para a viagem por mar, a 26 de Agosto de 1912 chega a Leixões, a bordo do paquete “Hildbrand”, acompanhado do piloto, Leopold Trèscartes, e do mecânico Felix Bouvier, de onde segue para o Palácio de Cristal, para proceder à sua montagem.
O aeroplano no Palácio de Cristal
O aeroplano no Palácio de Cristal
Foto: Arquivo Municipal do Porto
O avião foi transportado para o Palácio de Cristal, onde se processou a sua montagem, iniciando-se a 28 de Agosto, à vista de todos, ou de pelo menos todos os que puderam dispor da módica quantia de 200 reis para o bilhete de entrada (preço já com selo incluído!).
Depois de concluída a montagem, a 1 de Setembro, teve lugar a apoteótica cerimónia na nave central, numa «festa de homenagem ao Progresso e ao Génio humano», conforme anunciou o jornal, e na qual estiveram presentes alguns milhares de pessoas. O programa durou dois dias, e que incluiu animação por parte de diversas bandas militares e civis, e também de concertos no órgão de tubos do Palácio.
Sendo o objectivo angariar fundos para a creche, tudo foram pretextos para tal, como por exemplo: uma das casas de fotografia, registou os momentos da construção, vendendo depois as fotografias revertendo parte da receita para a creche; uma confeitaria da cidade colocou à venda durante este período «caixas e pacotes de doces finos envolvidos em papel com desenhos do biplano» com parte do produto a reverter a favor da creche; o restaurante do Palácio ofertou uma parte dos proveitos destes dias em prol da creche; a venda da “insígnia da aviação”, a “Ave Azul”, cinzeiros, e outros objectos também renderam alguns cabedais. Neste contexto, a angariação para creche, rendeu a astronómica soma de 625$165 reis!
Exemplar de postal comemorativo (note-se a
assinatura de Trescartes no canto inferior direito).
Fonte: APA
Muitas ajudas
Para além das ajudas em numeral, todo o processo desde o transporte, montagem e exposição, festival aéreo, passando ainda pela posterior deslocação a Lisboa, exibição e regresso, foram alvo de muitas ajudas – toda a cidade queria participar – aliando a nobre causa de ajudar a creche, ao inédito de ver um aeroplano a voar no Porto!
Desde o transporte marítimo, despacho e desalfandegamento, ao aval das autoridades sanitárias; descarregamento, transporte em zorras da Companhia Carris de Ferro do Porto; disponibilização do espaço em si e do trabalho dos seus funcionários por parte da direcção do Palácio de Cristal, bem como no acompanhamento da montagem e exibição do aparelho; facilidades especiais para alojar o aviador e o montador, «em condições muito favoráveis» num conhecido hotel da cidade; cedência do espaço para a construção do campo de aviação pelo Clube Hyppico Portuense e por proprietários particulares; publicidade ao evento através da afixação de cartazes por uma empresa de reclames; várias ofertas de óleos e gasolinas para todas as exibições do aeroplano no Porto e em Lisboa; um altímetro cedido por um comerciante da cidade para colocar no aeroplano para permitir a medição das altitudes pelo aviador; o policiamento em todas as fases (transporte, montagem, exibições, etc.), cortesia do Governador Civil; etc.
O Aero Club de Portugal também se disponibilizou a ajudar, para além de um donativo chorudo, enviou o seu vice presidente, o Capitão de Engenharia, Manoel Gonçalves da Silveira Azevedo e Castro, como observador, e que publicou na Revista Aeronáutica um muito pormenorizado testemunho de tudo o que viu, desde a descrição das instalações, meios e dos voos realizados.
o Maurice Farman numa das ilustrações d'O Comércio do Porto
O Campo de Aviação do Castelo do Queijo
O voo teve lugar num campo de aviação construído de raiz para o efeito, no local do campo de corridas do Clube Hipico Portuense, localizado junto ao Castelo do Queijo, entre a estrada da Circunvalação e a estação transformadora da Companhia de Carris do Porto.
Muito curioso o facto de que se situar no local onde fica o actual Parque Ocidental da Cidade, muito perto portanto da pista usada nas diferentes edições da Red Bull Air Race!!
Para a construção da pista, o que tomou alguns dias, muitos foram os que contribuíram para os processos terraplanagem, construção de vedações, construção do hangar, bancadas, montagem de linha telefónica, colocação de extintores, e que incluíram também, o transporte, os materiais, acompanhamento policial, para aqui também as forças vivas da cidade em acção, desde empresários a cidadãos comuns, passando pelas entidades oficiais, militares e civis, todos se quiseram de alguma forma envolver e participar.
Para além dos voos do Maurice Farman, registaram-se alguns outros, não se sabendo ao certo quando este espaço deixou de ser utilizado pela aviação.
Em Outubro de 1912, enquanto o Leopold Trèscartes voava por cima da capital, um outro pioneiro, Mr. Poumet, realizou diversos voos a partir campo de aviação do Castelo do Queijo, com um monoplano Borel. Os voos de exibição tiveram lugar a 11, 13, 15, 18 e 20 de Outubro de 1912, num total de 12 voos.
Uma multidão de curiosos em mais uma "invasão de campo"
aquando da visita de um Nieuport Ni.83E.2 à pista do
Castelo do Queijo.
Fonte: Ilustração Portuguesa/Jornal o Século
Em data que não consigo precisar Março e Abril de 1917, regista-se a passagem de um Nieuport Ni.83E.2 da Arma de Aeronáutica, tendo como piloto o Capitão aviador Norberto Guimarães, e o 1º Tenente de Marinha Adolfo Trindade, que efectuaram um voo com diversas escalas, desde V. Nova da Raínha, passando pela Figueira da Foz, Porto, Viana, e Braga.
O voo do “Creche O Comércio do Porto”
O aeroplano chegou ao campo de aviação a 4 de Setembro, em várias viagens de camião, um Saurer cedido pelo concessionário da marca, e desde então o campo esteve sempre rodeado de imensos curiosos que a polícia teve de ir afastando, nem sempre de forma pacífica.
Iniciou-se no dia seguinte a montagem e a 6 de Setembro, com o avião já montado, foram efectuados diversos testes no solo, inclusive de motor.
No sábado, 7 de Setembro de 1912, registou-se aquele que foi efectivamente o primeiro voo de um aeroplano no Porto, e depois um segundo, ambos de forma a testar o avião para os dias seguintes. A ele assistiram alguns milhares de pessoas, no recinto e nas redondezas.
o Maurice Farman a evoluir sobre o campo de
aviação do Castelo do Queijo
A cerimónia oficial ocorreu a 8 de Setembro, um domingo, a população do Porto e dos seus arrebaldes compareceu em peso, estimando-se que estariam umas 60.000 pessoas no local, o que era em si um fenómeno!
Os bilhetes para admissão no espaço do campo de aviação, variavam entre 100 e 1$000 réis, este último para a bancada, que estava cheia, bem como os demais espaços “a pagantes”.
O recinto incluía ainda a respectiva barraca de refrescos (parte da venda a favor da creche), bem como muitas outras do lado de fora do recinto (comidas e bebidas, frutas, limonada, etc.), e também aqui se venderam, como nos dias anteriores no Palácio de Cristal, as condecorações “Ave Azul”, bilhetes postais com fotografias do aeroplano, do piloto e do mecânico, cinzeiros alusivos, tudo em prol da creche.
A animação esteve garantida, e a cargo da Banda de Música dos operários da fábrica “A Constructora”, que também marcaram presença em todos os dias das exibições aéreas. Para além disso, a assistência médica estava assegurada, pela Cruz Vermelha, com diverso pessoal destacado para acudir a alguma desgraça ou simples maleita.
Todo o policiamento esteve a cargo da cavalaria e infantaria da Guarda Nacional Republicana que barrou, nem sempre com muito sucesso, as diversas “invasões de campo”, sobretudo na zona dos penetras “não pagantes” para assistir ao evento.
Nestes dias, e dado que o campo de aviação não estava localizado no centro urbano, e para que todos pudessem assistir, foram inúmeras as entidades que disponibilizaram transportes, nomeadamente através de serviços especiais e reforçados de eléctrico e carro americano, comboio (desde a Póvoa do Varzim, e Guimarães), todas elas a preços módicos; até rebocadores asseguraram também o transporte entre Leixões e a Cantareira, um navio até fez um cruzeiro para ver o aeroplano a voar desde o mar, e o único táxi registado na cidade fez incontáveis viagens. Escusado será dizer que, de distâncias consideráveis, muitos foram os curiosos que se deslocaram nos mais diversos meios de transporte, ou a pé…
Foram também inúmeros os lugares da cidade forrados de gente a querer ver o aeroplano, na Torre dos Clérigos, na Serra do Pilar, a bem dizer todos os pontos mais elevados, onde se podia vislumbrar um pouquinho do céu, e também telhados, varandas e janelas estavam pejados de mirones.
Repare-se a curiosidade de que, o Monte Crasto (Gondomar), que dista uns 6 kms do centro do Porto (13km do Castelo do Queijo), estava pejado de gente que teimava em querer ver aquele pontinho negro a evoluir ao longe por cima do contorno da cidade! (com as necessárias diferenças, o mesmo que se consegue ver hoje quando dali se avista o R44 a fazer os voos turísticos…).
O primeiro voo do dia 8 foi um voo de teste, com o piloto a fazer um voo de 12 minutos, a 250 metros de altura, sobrevoando a Foz e Matosinhos.
O segundo voo, o dito “voo oficial” teve a duração de 16 minutos, e depois do avião evoluir sobre o campo à altura de 300 metros, dirigiu-se ao Porto, sobre o rio Douro, passando pela Torre dos Clérigos, Praça da Liberdade, Marquês, e S. Mamede de Infesta.
Foi precisamente por aí que se registou uma peripécia que poderia ter dado em desgraça. Leopold Trèscartes levava um passageiro, o sportsman Sr. Luíz Marques Merino, um de diversos entusiastas que pagou para poder voar (ofereceu a imódica quantia de 50$000 reis). Conforme previsto, o Sr. Merino, iria desde as alturas fazer publicidade às águas das Pedras Salgadas, lançando panfletos (sob a forma de pequenos papelinhos verdes e vermelhos). Sucedeu que, esses mesmos panfletos não “cairam” todos para baixo da fuselagem como seria desejável, muitos foram alojar-se no ventilador do motor, causando a sua paragem. Rapidamente o piloto tomou a direcção do campo de aviação, aterrando em segurança a escassos 50 metros da pista, com pequenos danos para o aparelho, e danos em postes telefónicos e na vedação do campo.
Logo se juntou a populaça, a querer ajudar, e gerou-se até um tumulto com algumas prisões! Ordem estabelecida pela autoridade, lá o aparelho foi conduzido pelo piloto e mecânico, com a ajuda dos populares para o recinto e para o interior do hangar.
Reparada a avaria, a 11 de Setembro foi efectuado um voo de teste de 7 minutos e, da parte da tarde, retomados os voos constantes do programa, que acabou por ser só um já que, depois de um voo de 10 minutos, ocorreu uma “invasão de campo”, já não sendo possível efectuar mais voos nesse dia.
A 12 de Setembro realiza-se apenas um voo de experiência, e a 15 tem lugar o terceiro e derradeiro espectáculo público, no qual se efectuaram cinco voos, terminando a exibição do Maurice Farman no Porto.
No dia seguinte inicia-se a desmontagem e preparação para a viagem de comboio para Lisboa onde entre 27 de Setembro e 26 de Outubro fez 31 voos de demonstração, quase todos com passageiros e até, pasme-se, com senhoras! Para Lisboa também houve diversas ajudas, desde a disponibilidade da antiga carreira de tiro de Pedrouços (onde se localizava à data o Hipódromo) para os voos, bem como o respectivo policiamento, e muitas outras contribuições.
Regressou ao Porto no final de Outubro de 1912.
Capa da edição de 30 de Setembro de 1912 da revista OCCIDENTE.
O “Creche O Comércio do Porto” na vida militar
Era intenção na altura, da Direcção da Creche do Comércio do Porto em inaugurar uma escola de aviação militar, no Porto, sob orientação do piloto Leopold Trèscartes, assim que o biplano regressasse ao Porto, e naturalmente, o produto do valor das inscrições no curso reverteriam a favor da Creche. Tal não veio a ter lugar.
O Maurice Farman foi, algures em 1913, oferecido ao governo, sendo integrado em Junho de 1913 na Companhia de Aerosteiros. Com a criação da Escola de Aeronáutica Militar, a 14 de Maio de 1914, veio para Vila Nova da Raínha, onde serviu como aeronave de instrução, até 1917, quando foi retirado de serviço.
O primeiro aparelho da aviação militar é, como se sabe o Deperdussin B, oferta de Albino da Costa, e este o segundo aparelho, sendo que a estes se juntaram dois Maurice Farman MF11, todos eles utilizados no primeiro curso de aviação militar.
Para terminar, refira-se, o facto curioso de que foi precisamente neste aparelho, à altura baptizado com o nome de “Casta Suzana” (peça de teatro em voga na época), que Gago Coutinho recebeu o seu baptismo de voo, a 23 de Fevereiro de 1917, tendo aos comandos o seu companheiro Sacadura Cabral.
É caso para dizer: e esta, heim?
Na Escola de Aviação Militar, recebeu o apelido de “Casta Suzana”.
Rui “A-7” Ferreira
Tripeiro e Entusiasta de Aviação
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Nota: Por opção própria, o autor não escreve sob o atual acordo ortográfico.
Fontes de Informação:
Prof. Hélder Pacheco; Jornal “O Comércio do Porto”; O Tripeiro/Brig.Nunes da Ponte; Maj. Adelino Cardoso; Dr. Mário Correia; Henriques-Mateus; Eng. Lima Basto; Museu do Ar; Arquivo Municipal da CM Porto; “Dez Décadas de Força Aérea”/TGen. Mimoso e Carvalho; blog exOGMA; Restos de colecção (Blog); Illustração Portuguesa/O Século; revista Occidente; Frank Lemos Silveira / APA; Paulo Moreira; Arq. Augusto Mouta/A Aviação Militar Portuguesa Durante a 1ª Guerra Mundial;
Notas:
(1) – Caríssimos leitores Pássaro-Ferrosianos, até posso admitir que seja este aparelho, efectivamente, um M.F.4, contudo, não encontrei de forma clara informação sobre qual o modelo exacto do Maurice Farman que foi adquirido pelo jornal, referindo-me a ele como sendo um modelo de 1912, ou type 1912. Será definitivamente um modelo anterior ao M.F.7 de 1913, sendo que diversos autores e também o Museu do Ar, se referem a ele como sendo um MF.4 [registe-se a excelente réplica construída em 1977 na OGMA in illo tempore existente no Museu do Ar.]