A História é uma coisa que já aconteceu, já está por isso escrita, no espaço e no tempo, como sulcos na palma das mãos, ou rugas num rosto. Mas não é estanque, vai sendo acrescentada, descobrem-se novos dados, artefactos, documentos, vai por isso sendo objecto de novas interpretações, reescrevendo-se os catecismos que se julgavam concluídos.
Confesso-vos que o livro “Aterrem em Portugal!” de Carlos Guerreiro (que acabei de ler só agora!!!), é um belíssimo documento mas que, como acontece com outros, é um processo dinâmico, podendo ser alvo de novas edições, revistas e aumentadas – assim o esperamos todos nós! O Autor tem alimentado esta nossa fome, e muito bem, no seu
blog , e percorrido o nosso jardim à beira mar plantado em busca de novos testemunhos, documentos, e artefactos.
À curta distância em que me encontro de Vila Chã, em Vila do Conde, custa a crer que ainda não tivesse lá ido antes, visitar o local onde tiveram lugar duas aterragens forçadas, em 1942 e 1943, uma delas já referida por mim a propósito dos aviadores inumados no Oporto St. James Cemetery [
parte 1][
parte 2].
Mas foi a aquisição recente de uma fotografia num alfarrabista que me fez rever o tema e arrepiar caminho até à pequena vila piscatória.
“Memórias de uma Terra”
Alguns aspectos do interior do Núcleo Museológico “Memórias de uma Terra” da Associação Vila Chã
Pesca, que fica na Travessa do Sol, 54, 4485-743 Vila Chã.
Horário: Terças e Quintas 14H00 – 17H00 (visitas por marcação) - Telefone 229370818 e
telemóvel 916072881 - Localização GPS: 41°17'52.16"N 8°43'51.69"W
À semelhança de tantos outros locais onde se tenta preservar a memória dos hábitos e costumes, e a memória das pessoas, Vila Chã viu nascer por iniciativa da Associação Vila Chã Pesca, um espaço de memória, inaugurado ao público em 21 de Abril de 2012, denominado “Memórias de uma Terra”.
Nele podemos encontrar todos os aspectos relacionados com a história da vila, com ênfase na actividade piscatória, não só na pesca frente à costa, como também na pesca do longínquo bacalhau.
Por lá tem também um cantinho que fala de aviões, do período da 2ª Grande Guerra, nomeadamente de dois momentos que, como veremos, vieram perturbar a pacatez dos vilaplanenses.
Um Vickers Wellington e um punhado de heróis
Foi esta a foto do Wellington que adquiri num alfarrabista, no meio de uma
colecção de fotos da região de Vila do Conde, obtida em dias seguintes ao acidente,
já depois de o que restou do aparelho ter sido arrastado para a praia pela maré.
Como referi no a propósito dos aviadores inumados no Oporto St. James Cemetery [
parte 1][
parte 2], a 29 de Maio de 1942
[3], o Vickers Wellington IC, de registo HX390, do 1st Overseas Aircraft Delivery Unit/15th OTU, da RAF, em voo de ferry, entre Portreath em Inglaterra de onde descolou às 13H40M, com destino ao Egipto, via Gibraltar, e que aqui se despenhou.
De acordo com uma das fontes consultadas [1], devido a problemas no motor de estibordo, a tripulação tentou a amaragem, mas o avião partiu-se, já que terá embatido nos Penedos d’Aguilharda. Dois dos tripulantes morreram, correspondendo aos túmulos existentes no Cemitério Britânico do Porto(*), e todos os restantes se salvaram, nomeadamente os sargentos Gould e Jakson, feridos com diversas lesões e braços partidos, subiram para uma das asas. Anstey e Wallace-Cox ainda tentaram utilizar um dos botes de borracha, mas este não chegou a encher convenientemente. Foram salvos por pescadores locais, seguindo os dois feridos mais graves para um hospital no Porto. Anstey e Cox foram encaminhados uma unidade militar na Póvoa do Varzim, onde estiveram durante três semanas, depois para o Porto, de onde seguiram de comboio para as Caldas da Rainha, e regressaram a Inglaterra a 12 de Julho, via Gibraltar.
A tripulação completa era constituída por,
Sergeant H. Jakson – operador de rádio
1320384 Sergeant M.H.Thompson(*) – artilheiro de cauda
Sergeant J. W. Gould – operador de rádio
980177 Sergeant I. Wallace-Cox - navegador
114195 P/O J. P. Anstey – co-piloto
1312337 Sergeant John Gordon Daniels(*) - piloto
Os heróis de Vila Chã
Os seis heróis de Vila Chã num belíssimo registo fotográfico, são eles:
Manoel da Silva Oliveira (arrais), Manoel Carneiro, Cândido Augusto,
Emilio Alves Neto, Carlos Ribeiro dos Santos, e José Maria da Silva.
Não há heróis anónimos, pelo menos aqui, e foram seis os pescadores de Vila Chã que naquele dia de mar muito agitado colocaram a sua vida em risco para salvar os tripulantes do Wellington, um gesto muito característico das gentes do mar, descrito na imprensa da época como revelador da sua «coragem, a sua generosidade, a sua solicitude e a fidalguia da sua alma».
Os seis homens fizeram-se ao mar, numa minúscula embarcação (catraia), num mar que como disse estava muito ruim, eram: Manoel da Silva Oliveira (arrais), Manoel Carneiro, Cândido Augusto, Emílio Alves Neto, Carlos Ribeiro dos Santos, e José Maria da Silva.
O seu gesto não passou ao lado da comunidade britânica, que demonstrou não só a gratidão e reconhecimento por parte dos tripulantes do Wellington, mas sobretudo pelo agradecimento oficial, por parte da RAF, que a cada um entregou um prémio de 500$00!
Um Lancaster … para a sucata
Uma das muitas fotos do Lancaster que amarou na praia em Vila Chã, já depois
de também ter sido empurrado pela maré para a praia. Repare-se no pormenor
de destruição do nariz do aparelho, causado pela tripulação que, como era de
esperar, destruiu todos os equipamentos electrónicos considerados secretos.
A 17 de Setembro de 1943, amarou frente a Vila Chã, o Avro Lancaster MkIII de registo EE106, do 619º Esquadrão do Comando de Bombardeiros da RAF. O aparelho descolou às 20H00 de 16 de Setembro de 1943, da sua base de Coningsby, para participar num ataque a viadutos de caminho de ferro, em Antheór, no Sul de França, tendo sido atingidos pela antiaérea, mas sem gravidade. No regresso devido ao mau tempo e pouca visibilidade, perderam-se e quando conseguem orientar-se verificam que estão a Norte de Espanha, no Golfo da Biscaia. Com combustível insuficiente para regressar a Inglaterra ou a Gibraltar, procuraram a costa Portuguesa para tentar aterrar ou amarar.
Depois de duas passagens a baixa altitude empreendem a amaragem frente às praias de Vila Chã, imobilizando-se a menos de 200 metros da Praia do Puço. Os seis elementos da tripulação saíram ilesos, mas não sem antes destruiu os equipamentos electrónicos secretos. A população saiu à rua, e os pescadores também aqui ajudaram a tripulação a chegar a terra firme.
O aparelho foi sucateado no local, como aconteceu a muitos outros, não
tendo ficado um parafuso como testemunho desta história… será?
Facto curioso, a vila tem sido visitada por familiares dos tripulantes de ambos os aparelhos, e em 22 de Novembro de 2015, foi inclusivamente erigido um pequeno memorial alusivo a este último acidente. Fica a faltar marcar o local do outro acidente.
Localização GPS: 41°17'17.98"N 8°43'55.11"W
Rui “A-7” Ferreira
Entusiasta de aviação
Nota: o autor escreve na grafia antiga por opção.
Notas:
[1] “Aterrem em Portugal”, de Carlos Guerreiro, Ed. Pedra da Lua, 2008
[2] Carlos Guerreiro cita no seu livro uma outra publicação: o jornal “The Portuguese Resident”, na sua edição de 4 de Novembro de 2002, onde publica um trabalho sobre este acidente, da autoria de Jon Rivelson Wilson.
[3] Por opção do autor, foi mantida a data inscrita nas lápides em St. James como a data do acidente e do falecimento dos tripulantes ainda que, segundo Carlos Gomes, referindo uma consulta ao Evade&Escape Report desse acidente, o relatório este refere a data do acidente como sendo 28 de Maio, e não a data inscrita nas campas, nem tão pouco a que o autor refere no seu livro, 30 de Maio. Uma discrepância que fica por esclarecer.